Sexta-feira, Novembro 22, 2024
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‘A Intrusa’: histórias de um verão cinematográfico em Uruguaiana

45 anos atrás, a rotina de uma cidade na entrada do Brasil virava de ponta-cabeça ao receber as gravações do longa-metragem ‘A Intrusa’, de Carlos Hugo Christensen. Agora, com a assistência da atriz Maria Zilda Bethlem e outras participações especiais, o Jornal do Comércio conta em dez capítulos e um epílogo as histórias dos bastidores do filme e das vidas tocadas por esse momento único na história do cinema gaúcho.

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1. Primeiro ato

Era dezembro de 1978 e Uruguaiana vivia mais um fim de ano muito quente, com os termômetros superando os trinta graus logo pela manhã. Era o início de mais um verão típico na maior cidade da Fronteira Oeste do Rio Grande do Sul, e também a hora dos moradores decidirem como iriam enfrentar o calor.

A maioria ficava em casa, por falta de tempo ou dinheiro para viajar. Uns poucos enfrentavam mais de 600km de estrada rumo a Porto Alegre ou ao litoral, e no caminho cruzavam com a peregrinação anual de conterrâneos, a maior parte estudantes universitários, de volta para passar as festas de fim de ano com suas famílias. Para esses que retornavam e aqueles que não tinham como sair, não sobravam muitas opções de lazer.

Depois do réveillon, o aquecimento das escolas de samba da cidade e a temporada de bailes de carnaval ditariam o ritmo da estação para os 90 mil habitantes pelo menos até março. Era diversão garantida, mas com hora e data para acabar. Por isso, nessa época, os jovens uruguaianenses corriam atrás de lampejos de diversão: valia visitar amigos, frequentar bares e clubes, levantar as mãos aos céus caso conhecessem alguém com piscina em casa.

No fim de semana, quem tinha carro ou carona atravessava a Ponte Internacional Getúlio Vargas-Agustín P. Justo em busca dos melhores vinhos, alfajores e outras diversões que só a vizinha Paso de Los Libres poderia proporcionar. Na aduana, passavam pela fila de automóveis argentinos abarrotados de parentes e bagagens aguardando a liberação para seguir viagem rumo às praias de Santa Catarina. O vai-e-vem em Uruguaiana é incessante, mas previsível: são sempre os mesmos que chegam, ficam ou partem. Por isso, tamanha a surpresa quando visitas inesperadas vieram bem de longe, se abancando na cidade de mala, cuia e câmera.

Logo menos, sob o sol escaldante, uma equipe de cinema posicionaria tripés e microfones nos campos afastados da zona rural. Atores e técnicos circulariam pela cidade conhecendo a vida social fronteiriça, fazendo amizades e levando uma animação diferente aos lugares  que os jovens batiam ponto de tanto frequentar. Enquanto isso, alguns moradores receberiam um convite tentador para participar daquele bochincho. Pouco a pouco, a monotonia dava lugar à efervescência cultural e, em meio à vastidão do pampa, começavam as gravações do filme A Intrusa.

José de Abreu e Maria Zilda Bethlem em pôster de 'A Intrusa'

José de Abreu e Maria Zilda Bethlem em pôster de ‘A Intrusa’

CINEMATECA BRASILEIRA/DIVULGAÇÃO/JC

História de violência, tradição e isolamento ambientada em 1897, A Intrusa é uma das produções mais ousadas a serem rodadas no Rio Grande do Sul. A obra do diretor argentino Carlos Hugo Christensen, radicado no Brasil desde a década de 50, é alheia a rivalidades internacionais, inevitavelmente mais fortes à beira do Rio Uruguai que divide o Rio Grande do Sul e a província de Corrientes.

A Intrusa é uma produção brasileira, mas, assim como Christensen, tem essência binacional. O roteiro era adaptado de um conto de Jorge Luis Borges, o escritor, poeta, ensaísta e crítico que uniu conceitos filosóficos e metafísicos na sua obra premiada, se consagrando como um dos mais importantes autores da língua espanhola. No pampa misterioso de Borges visualizado por Christensen, se ouvia o vento e a trilha milongueira composta por Astor Piazzolla, bandoneonista que revolucionou o tango, a milonga e a música erudita, autor de clássicos como “Libertango” e “Adiós Nonino”.

Do lado de cá do rio, Christensen escolheu três atores jovens e até então pouco conhecidos para dar vida a seus labirínticos protagonistas: José de Abreu e Arlindo Barreto como Cristiano e Eduardo Nilsen, dois irmãos muito unidos que causavam medo e fascínio na região, e Maria Zilda Bethlem como Juliana Burgos, a mulher silenciosa que é trazida por Cristiano para servir a eles o tempo todo, causando uma ruptura na relação fraterna com sua presença.

Na trama, o frio do inverno acompanhava os irmãos Nilsen na lida com o campo, nas rinhas de galo no bar e na venda de cavalos roubados, e o vento minuano soprava o suspense do que estava por vir. No set de filmagem, as altas temperaturas da Fronteira Oeste castigavam os atores que estavam sempre em indumentária. “Era um calor infernal”, relembra Maria Zilda Bethlem. A atriz, com carreira extensa e premiada no cinema, novelas e teatro, teve em A Intrusa seu primeiro papel de destaque após uma série de pequenas participações. “Eu usava casaco, os meninos usavam aqueles ponchos quentes com bombacha e chapéu, então era uma barra pesada, porque calor tudo bem, agora botando roupa de inverno ficava duro”.

Uruguaiana é a cidade com maior amplitude térmica no Brasil, e a sombra é pouca: nas mais de 3 mil espécies que integram a flora do pampa, predominam plantas campeiras baixas como gramíneas, herbáceas e pequenos arbustos. Para a sorte de todos os envolvidos nas filmagens, na busca por locações, a produção encontrou um campo com dois umbus de grande porte e, no meio do caminho entre elas, foi erguido o cenário principal da história, a casa dos irmãos Nilsen. “A gente saía do hotelzinho, entrava na Kombi e ia para lá, e passávamos o dia inteiro. A comida vinha e a gente comia ali, cada um procurando uma sombrinha”, conta Maria Zilda. Entre as árvores, dentro de cabanas de pedra e debaixo de qualquer sombra disponível, Carlos Hugo Christensen e sua equipe começaram a trabalhar em um filme que foi premiado nos festivais no Brasil e no exterior, lançou os atores principais ao estrelato e consolidou o trabalho do diretor como um dos mais originais do cinema nacional.

Mas o tão almejado sucesso só viria depois dos inúmeros desafios enfrentados pela produção antes, durante e depois das filmagens. A indignação dos contrariados pelo erotismo e pela abordagem de tabus sociais no longa-metragem, acentuada pelo ambiente pampeano, onde viviam gaúchos intransponíveis e de obediência a um código de conduta severo e silencioso, era inevitável para uma obra de arte ousada como A Intrusa em uma época de repressão.

Obstinado, no entanto, Christensen não se deixou vencer por moralismos nem por seus opositores, não importava quem fosse: o Exército Brasileiro, a Polícia Federal, ovelhas brancas ou sua própria obsessão estética. Ao longo daquele verão extraordinário, o diretor e sua equipe transformaram Uruguaiana, cidade solitária na porteira do Brasil, em um cenário de grandes histórias.

2. Maria Zilda Bethlem, a intrusa

Interessada no papel desafiador, atriz deixou emprego estável no Rio de Janeiro para estrelar no longa-metragem

Interessada no papel desafiador, atriz deixou emprego estável no Rio de Janeiro para estrelar no longa-metragem

REVISTA ISTOÉ/ARQUIVO FUNARTE/DIVULGAÇÃO/JC

Conhecida nacionalmente pelo trabalho em novelas como Bebê a Bordo (1988) e Por Amor (1997) e nos filmes Vagas para Moças de Fino Trato (Paulo Thiago, 1993) e Eu Não Conhecia Tururú (Florinda Bolkan, 2000), Maria Zilda Bethlem não para, e também não cede. No dia-a-dia animado por netos, amigos e gatos no Rio de Janeiro, onde mora desde que nasceu, a atriz, de 72 anos, está em busca de novas histórias. “Tem um ditado que diz que ator desempregado é atormentado. É verdade, e não é uma questão financeira: o ator não consegue ficar sem exercitar o seu ofício. A gente vai ficando numa agonia, numa ansiedade, doido para pisar num palco, para ficar na frente de uma câmera, para decorar um texto”, reflete Maria Zilda. “Aqui no Brasil a gente fala representar, mas o verbo em inglês é ‘to play’, que é brincar, como em francês, ‘jouer’, que é jogar. Então, atuar é uma forma divertida de viver”.

A vontade de se desafiar como atriz é uma marca de sua trajetória de mais de cinco décadas, e foi o que levou Maria Zilda até os campos de Uruguaiana naquele dezembro quente de 1978. A Intrusa foi um divisor de águas profissional: a atuação como Juliana Burgos, sua primeira personagem de relevância no cinema, lhe rendeu elogios, o prêmio de melhor atriz no Festival de Cinema de Montreal e novas oportunidades.

Maria Zilda começou nos palcos em 1972 com a peça O Genro que era Nora, de Aurimar Rocha, no Teatro de Bolso do Rio de Janeiro. Na televisão, já tinha participado das novelas Escalada (1975) e Nina (1977). “Com seis anos eu sonhava que descia uma escada de tapete vermelho, depois quando eu tinha uns 11 anos a minha vó me levou no teatro para ver O Milagre de Anne Sullivan, e eu disse para ela que era ali que eu queria passar minha vida”, diz.

Enquanto buscava essa meta, Maria Zilda se formou bacharel em ciências políticas, influenciada pelo pai, o jornalista e economista de esquerda Humberto Bastos. Membro do Conselho Nacional de Economia por 17 anos, Bastos teve que sair do Brasil por perseguição política do regime militar, e morreu exilado em Roma em 1977.

A mãe, Nilda Bethlem, era professora e autora de livros didáticos. Rígida, tradicional e responsável por chefiar a família com o exílio do marido, ela apoiava a qualificação acadêmica da filha, especialmente por ser uma alternativa aos palcos. “Minha mãe dizia que a carreira de atriz era muito instável e que não dava segurança a uma mulher”, relembra Maria Zilda. Temerosa, Nilda entrou em contato com conhecidos da área de educação e conseguiu um emprego para a filha no Movimento Brasileiro de Alfabetização (Mobral).

Maria Zilda começou em um cargo burocrático, até ter a oportunidade de conhecer o presidente do Mobral, Arlindo Lopes Correia. Como tinha interesse em continuar trabalhando para buscar a independência financeira para si e seu filho Rodrigo, à época com dois anos, Maria Zilda perguntou se poderia trabalhar em uma área ligada às artes. Sensível ao pedido, Lopes Correia a transferiu para o Mobral Cultural, onde foi introduzida a profissionais da música, literatura, rádio, teatro e cinema.

Um projeto em particular ainda ecoa entre as lembranças da atriz: um programa de rádio sobre ervas medicinais. “As pessoas diziam qual era a erva que elas achavam preciosa e mandavam para o endereço, que no caso era a minha sala, um saquinho com a erva dentro, ou um potinho com o pó ou líquido, então a minha sala parecia a de uma bruxinha”, brinca. O projeto rendeu um livro publicado com o apoio do Ministério da Saúde, e a fez ganhar a confiança de Lopes Correia.

No Mobral Cultural, Maria Zilda Bethlem também se aproximou dos críticos Salvyano Cavalcanti de Paiva e Valério Andrade, que trabalhavam na área de cinema da instituição e apoiavam sua vontade de seguir carreira de atriz. Quando souberam que Carlos Hugo Christensen procurava uma protagonista para sua adaptação do conto “A Intrusa” de Jorge Luis Borges, foram avisá-la. O diretor estava à procura de uma atriz talentosa para interpretar uma personagem principal que estaria quase sempre em silêncio, e pensaram em seu nome para o papel. Maria Zilda não conhecia o trabalho do cineasta, mas ficou honrada e se comprometeu a ler o conto de Borges e dar uma resposta o quanto antes. Feita a leitura, o interesse no desafio aumentou, e ela pediu para que Paiva e Andrade a apresentassem a Christensen.

Maria Zilda não lembra de muitos detalhes desse primeiro contato, mas algo nela conquistou a atenção do diretor que, após conhecê-la, pulou a fase de testes. “Nós conversamos, ele ficou muito impressionado comigo, e pronto, me contratou para fazer o filme”, conta a atriz.

Aceitar o desafio significava também aceitar o compromisso de deixar o Rio de Janeiro e se estabelecer em Uruguaiana por semanas, o que ela informou que faria ao presidente do Mobral. Com a demissão do instituto, teria uma reserva financeira e estaria preparada para quando retornasse do Rio Grande do Sul. Para Arlindo Lopes Correia, a contragosto, só restava dizer sim. Poucas semanas depois, Maria Zilda embarcava em um avião rumo a Porto Alegre.

Carlos Hugo Christensen contou com ajuda especial de Maria Zilda para garantir início das gravações

Carlos Hugo Christensen contou com ajuda especial de Maria Zilda para garantir início das gravações

REVISTA ISTOÉ/ARQUIVO FUNARTE/DIVULGAÇÃO/JC

Dias antes do início das gravações de A Intrusa, enquanto estava em casa terminando os preparativos para a viagem quando o telefone tocou. Era Carlos Hugo Christensen, falando de Uruguaiana, com um pedido a fazer. “Ele me perguntou ‘Maria Zilda, você tem amizade com um parente seu chamado Fernando Bethlem?’. Eu falei ‘não, eu sei que ele é primo da minha mãe’, e ele disse ‘pois é, é que nós estamos tendo problemas com a filmagem aqui’”.

O diretor explicou que autoridades locais do Exército acreditavam que A Intrusa era uma obra política crítica ao regime militar, algo que até hoje confunde a atriz. “O filme era baseado no conto do Borges, que de comunista não tinha nada”, observa Maria Zilda. “Não tinha porque eles acharem que era um filme de esquerda”.

Para entender o problema e esclarecer essa situação, ela ligou para o primo Fernando Belfort Bethlem, ministro do Exército Brasileiro no governo de Ernesto Geisel. General linha-dura, ele conhecia a Fronteira Oeste de perto: no começo da carreira, serviu como tenente no 8º Regimento de Cavalaria Independente de Uruguaiana. Em 1956, retornou como tenente-coronel para chefiar o 9º Regimento de Cavalaria em São Gabriel, superior do então major e futuro presidente João Figueiredo.

Belfort Bethlem se informou sobre o caso e retornou explicando que a proibição ocorreu porque o filme era “amoral e politicamente duvidoso”. Em resposta, Maria Zilda propôs que ele lesse o roteiro, ressaltando que A Intrusa não era uma pornochanchada e sua base era um conto do notório direitista Borges, argumentando que impedir uma produção pronta para as filmagens seria injustiça, independente de sua presença no elenco. Ela enviou o texto, e em poucos dias a autorização veio. “Acho que é por isso que o Christensen gostava de mim”, ri a atriz.

3. Filhos de Nossa Senhora de Sant’Ana

Arlindo Barreto e José de Abreu interpretaram os irmãos Eduardo e Cristiano Nilsen

Arlindo Barreto e José de Abreu interpretaram os irmãos Eduardo e Cristiano Nilsen

FACEBOOK RETROSPECTIVA CHC/DIVULGAÇÃO/JC

Encontrar os companheiros de cena para Maria Zilda Bethlem não foi tarefa fácil. Carlos Hugo Christensen tinha uma visão específica de atores altos e loiros para interpretar Cristiano e Eduardo Nilsen, dois irmãos de ascendência dinamarquesa sem muita ideia de como vieram parar no meio do pampa.

José de Abreu foi o escolhido para interpretar Cristiano, o mais velho. Na época das filmagens, o ator morava em Porto Alegre com a então esposa, a diretora de teatro Nara Keiserman, e conciliava a carreira nos palcos com a produção de espetáculos. O sucesso na jornada dupla projetou Zé na cena artística gaúcha, e o colocou no radar de Christensen.

O irmão mais novo, Eduardo, era o personagem de Arlindo Barreto, que havia feito pequenas participações em novelas da Globo e na primeira versão do Sítio do Picapau Amarelo. Filho da vedete Márcia de Windsor, Arlindo chamou a atenção do diretor por atender exatamente ao que ele buscava sob o ponto de vista estético – uma versão mais suave do irmão mais velho e bruto.

Arlindo Barreto (sentado, ao centro) e figurantes locais no cenário do bolicho

Arlindo Barreto (sentado, ao centro) e figurantes locais no cenário do bolicho

ARQUIVO FUNARTE/DIVULGAÇÃO/JC

O paulista Fernando de Almeida e o carioca Ricardo Wanick se destacaram interpretando os irmãos João e Daniel Iberra, personagens borgianos que rivalizavam com Cristiano e Eduardo naquele recanto. Maurício Loyola era João dos Pássaros, amigo dos Nielsen e o mais próximo de um alívio cômico no filme.

A veterana mineira Palmira Barbosa, intérprete da cafetina Efigênia, já havia atuado sob Christensen em O Menino e o Vento (1969) e A Mulher do Desejo (1975), dois trabalhos que o diretor realizou em Minas Gerais. Única mulher respeitada pelos homens naquele lugar, Efigênia tem sob sua tutela as “chinas”, cinco delas assim creditadas no filme. Jane Canabarro, Jane Gonçalves, Carla Mancio, Laura Marsiaj e Lais Oliveira eram algumas das figurantes que contracenaram com os atores nas cenas fora da casa e da vida privada dos irmãos Nilsen e de Juliana, assim como a misteriosa e passageira “moça da estrada” (Heloisa Gedel).

Em outro cenário importante, o bolicho, os irmãos Nilsen encontravam mais figuras peculiares. Lá quem ditava as regras era o bolicheiro – dono do bar e pequeno mercado de fronteira – interpretado por Jorge Bastos, e quem narrava os acontecidos era o pajador – músico e declamador de improviso – de Miguel Barbará. Entre o bolicho, o prostíbulo, a casa e a lida do campo, os Nilsen interagiam com conterrâneos fictícios interpretados por moradores de Uruguaiana. Alguns tinham nome, como Benito (Nelson Pinto Bastos), Coronel Bento (José Barbosa) e Chicão (Cláudio Piegas). Outros tinham apenas um traço pessoal, como o dono do galo (Hermes Lago), o forasteiro (Ramon Larré), o coimeiro (Fernando Tellechea), o correntino (Nirio Alves), e os sucintos rapaz (Sérgio Tellechea) e Velhos nº 1 (Martim Pons) e nº 2 (Aldo Bellini).

4. Os labirintos do pampa

‘A INTRUSA’/YOUTUBE/DIVULGAÇÃO/JC

Canção do Amanhecer
letra de Ubirajara Raffo Constant
melodia de Astor Piazzolla

Gosto de estar na planura
Quando desponta a manhã
Ouvir o grito campeiro
Na garganta de um tahã

Na ânsia de andar lonjuras
Nunca busquei parador
A ânsia me fez andejo
E a pampa, payador

E ao contar coisas da pampa
A todos devo dizer
Coisas boas, cosas malas
Poderão acontecer

Coisas boas, cosas malas
Poderão acontecer

Antes de pedir para que Maria Zilda convencesse o chefe máximo do Exército Brasileiro que A Intrusa não era um filme comunista, Carlos Hugo Christensen primeiro precisou vencer a relutância de Jorge Luis Borges. De acordo com a crítica de cinema e curadora Andrea Ormond, pesquisadora da obra de Christensen, Borges tinha uma relação conflituosa com o filme desde a sua concepção. Outras versões cinematográficas de suas obras não o agradaram, e essa era uma da série de ressalvas que o escritor tinha para uma adaptação do conto “A Intrusa”, história da relação profana de dois irmãos muito apegados que dividem a mesma mulher, publicada originalmente no livro O Informe de Brodie (1970).

Quando Borges se sentiu assegurado de que a adaptação estava em mãos confiáveis, a autorização eventualmente aconteceu. Em depoimento resgatado pelo Dossiê Filmes Brasileiros, arquivo gratuito virtual de documentos públicos disponibilizado pela Fundação Nacional de Artes (Funarte), Carlos Hugo Christensen definiu a oportunidade como “o mais precioso presente” que recebeu na carreira. O diretor tinha em Borges sua principal inspiração intelectual e tratou a adaptação como uma grande responsabilidade, introduzindo elementos cênicos característicos da obra do escritor, como adagas e espelhos, além da Bíblia, de função central na história, para criar uma relação visual ao universo borgiano.

Carlos Hugo Christensen e Jorge Luis Borges assinam contrato para adaptar o conto

Carlos Hugo Christensen e Jorge Luis Borges assinam contrato para adaptar o conto

ARQUIVO PESSOAL DE AFRÂNIO VITAL/DIVULGAÇÃO/JC

Com US$ 500 mil de orçamento, Christensen chegou em Uruguaiana no inverno de 1978 e dedicou dois meses só para planejamento, junto ao assistente de direção Francisco Marques e o produtor Daniel Carvalho, para escolher os cenários e estudar todos os elementos de cena.

Para ajudar na caracterização correta, o diretor contou com o conhecimento enciclopédico do folclorista Ubirajara Raffo Constant. Biratucho, como era conhecido, era polivalente: artista plástico aprendiz do escultor Vasco Prado, compositor, escritor de livros e poemas como o épico “Retorno Bravo”. Naquela ocasião, levaria ao cinema tudo o que acumulou em uma vida dedicada à cultura do povo gaúcho, inserindo elementos nativos nos diálogos e planejando os cenários e figurinos de acordo com as tradições de construção da época, dando ao filme uma precisão histórica daquele tempo e lugar.

Na análise de Andrea Ormond, foi preciso “um apuro delicadíssimo de cenografia” para filmar 1897 sem as modernidades que chegaram à Fronteira anos depois, e “sem a civilidade frágil de 1979”. Apesar do conto original se passar na província de Buenos Aires, Ormond conta que Borges ouviu o boato que inspirou a história quando estava em Santana do Livramento, cidade fronteiriça com o Uruguai. Contudo, a paisagem já estava com elementos modernos demais para que Carlos Hugo Christensen executasse sua visão obsessiva de reconstrução visual.

A casa dos irmãos Nilsen foi projetada por Raffo Constant com base em desenhos antigos de moradias do fim do século XIX, e erguida na propriedade do estancieiro Hermes Pinto Filho com as pedras de um curral centenário desmontado para este fim. Também havia uma preocupação da equipe para que duas modernidades específicas nunca aparecessem no horizonte: cercas de arame farpado, material inventado nos Estados Unidos em 1867 mas que só chegou ao Brasil em 1913, e eucaliptos, árvores que só se popularizaram no pampa na década de 70, com seu uso em monocultura de reflorestamento incentivado pelo governo militar. Também houve uma atenção especial com os animais, pois no século 19 só existiam ovelhas pretas nativas da região, diferente da realidade dos anos 70, assim como o gado também não era o mesmo. Para atingir a fidelidade exigida por Christensen, a produção encontrou e fez acordos com estancieiros que criavam as espécies que o diretor procurava.

Outros contratempos que surgiram no set eram solucionados com a ajuda da comunidade uruguaianense, como por exemplo uma cena na qual Eduardo (Arlindo Barreto) protegia o irmão Cristiano (José de Abreu) de um ataque de serpente. Para isso se aguardava a chegada de uma cobra cruzeiro sob os cuidados de uma especialista do Instituto Butantan de São Paulo, mas nenhuma apareceu. A produção solucionou o problema com um anúncio nas rádios de Uruguaiana solicitando colaboração para encontrar uma cobra cruzeiro ou semelhante, e em pouco tempo um ouvinte solícito e corajoso atendeu ao pedido. Outro improviso, este uma superprodução, foi a recriação do vento minuano, que sopra mais forte e assustador à medida em que cresce a tensão entre Juliana e os irmãos, com a abertura de uma pista improvisada no meio do campo para acomodar o pouso de dois aviões que geravam vento com suas hélices.

Um depoimento de Carlos Hugo Christensen resgatado pelo Dossiê Filmes Brasileiros da Fundação Nacional de Artes (Funarte) sintetiza como ele enfrentou aquele período: “Há uma velha superstição do cinema que afirma que todo filme que enfrenta muitos problemas está fadado a ter sucesso. Os realizadores de A Intrusa confiam em que, mais uma vez, a tradicional crença se confirme”.

5. O silêncio de Juliana Burgos

Personagem exigiu controle físico e atenção a pequenos gestos

Personagem exigiu controle físico e atenção a pequenos gestos

ARQUIVO FUNARTE/DIVULGAÇÃO/JC

As sucessivas adversidades na filmagem de A Intrusa exigiam de Carlos Hugo Christensen um controle metódico sobre o set, o qual ele exercia com autoridade. Maria Zilda Bethlem diz que o diretor era educado mas de poucos sorrisos, não sentava para conversar com os atores antes da cena e só permitia que a equipe começasse a almoçar quando ele se sentasse à mesa para começar seu intervalo. Para a atriz, Christensen era ao mesmo tempo “uma pessoa muito doce” e “um general”. Mesmo assim, Maria Zilda guarda apenas boas memórias do convívio com o diretor. “Queria muito fazer o filme, mas estava com meu coração miudinho porque era a primeira vez que eu deixava meu filho sozinho por tanto tempo, e ele falou que ia tentar fazer o melhor por mim”, confidencia. Por isso, Christensen organizou o esquema de gravações juntando todas as suas cenas para que ela pudesse retornar ao Rio de Janeiro em três semanas.

Essas semanas foram intensas para Maria Zilda, que tinha uma escala de trabalho maior do que a dos colegas, e por isso menos tempo livre para conhecer a região. “Enquanto todo mundo atravessava a fronteira para comprar lança-perfume e passear eu trabalhava feito uma cachorra, mas com uma meta, que era voltar para a minha casa”.

Além da rotina corrida, Maria Zilda Bethlem tinha uma personagem desafiadora em Juliana, protagonista que sofria todos seus horrores em silêncio e falava apenas duas frases durante o filme inteiro. “Tinha que fazer tudo passar pela expressão do rosto e pela postura, mas naquela justa medida, assim como caminhar num fio de navalha, para que não ficasse exagerado e nem que se deixasse de ficar nítido a dor e o sofrimento que aquela mulher sentia”, explica a atriz. “Se você fizer um olho arregalado na televisão, passa. Se você arregalar o olho demais no filme, em uma tela grande, fica uma coisa horrorosa”.

No mundo de homens violentos de A Intrusa, Juliana é a mulher confinada ao serviço e ao silêncio. Ela é adquirida no bordel local e levada à casa dos irmãos Nilsen por Cristiano, e sua existência causa discórdia entre os irmãos. Eduardo é distante e não gosta de Juliana, mas se aproxima quando Cristiano vai viajar e permite que ele a “use”. A personagem é submissa a todos os mandos e desejos dos irmãos Nilsen, mas sua presença quieta leva a complexa relação fraterna à ebulição – e, por isso, eles a culpam. Sem que os irmãos percebam, a balança de poder começa a oscilar, e Juliana se torna uma presença opressora, mesmo que apenas por existir passivamente.

Presença submissa de Juliana Burgos no convívio do lar tensionou relação entre os irmãos

Presença submissa de Juliana Burgos no convívio do lar tensionou relação entre os irmãos

ARQUIVO FUNARTE/DIVULGAÇÃO/JC

Refletindo sobre a história, a atriz opina que os Nilsen não eram conscientes das vulnerabilidades em sua relação até sua personagem chegar em suas vidas. “Eles tinham uma relação de dois irmãos unidos que moravam só, trabalhavam e de noite para o puteiro para poder beber, transar e viver o cotidiano deles sem nenhum motivo de discórdia. No entanto, a Juliana desperta neles um sentimento que não conheciam, que é o ciúme, a posse. Afinal de contas, de quem é ela? É minha ou sua?”, questiona.

Para atender às suas próprias expectativas e as de Christensen, Maria Zilda buscou viver a personagem evitando conversas, muitas vezes se isolando do resto da equipe ao longo do dia de filmagem. “Queria manter aquele sentimento de solidão e desespero dentro de mim”, explica. A dedicação foi reconhecida pelo diretor, que, no corte final do filme, deixou um improviso dela em uma cena crucial entre Juliana e os dois irmãos. No material promocional de A Intrusa disponibilizado à época pela extinta estatal Embrafilme, Christensen disse que Maria Zilda “dificilmente poderia ser superada por outra colega na interpretação extraordinária do patético personagem borgiano”.

Hoje, em retrospecto, Maria Zilda lembra de A Intrusa com orgulho do seu trabalho. “Fiz um trabalho com muita paixão, porque a locação é uma coisa que te dá isso. Você tá longe de casa, longe do seu cotidiano, então você se concentra mais”.

Isolamento da Fronteira Oeste evidenciava solidão de uma rotina de filmagens

Isolamento da Fronteira Oeste evidenciava solidão de uma rotina de filmagens

ARQUIVO FUNARTE/DIVULGAÇÃO/JC

A distância do dia-a-dia também transformava Uruguaiana numa espécie de redoma, dentro da qual a dedicação à rotina de gravação era o único compromisso, e tudo fora dela parecia estar suspenso no ar. E assim, no exílio do pampa, vidas poderiam se cruzar por mais de um rumo. “Tive um caso de amor com o Zé de Abreu. Por conta do filme, sei lá eu, ou por causa da solidão da locação. Eu nunca tinha visto ele, ele nunca tinha me visto, mas a gente se apaixonou”, reconta Maria Zilda. José de Abreu morava em Porto Alegre, e o encontro em Uruguaiana se tornou uma relação passageira e intensa, sem que compartilhassem muito de suas vidas fora dali. Com o fim das filmagens, a relação se tornou uma de amizade e incentivo profissional, e também de hospedagem em casa quando o ator veio da capital gaúcha ao Rio de Janeiro para o lançamento de A Intrusa. “Conhecer o Zé na época foi um presente, porque locação pode ser uma coisa muito solitária”, conta. “Éramos poucos atores, o resto era figuração de pessoas que moravam lá”.

Quando voltava das gravações no campo, Maria Zilda ia se distrair de sua personagem tão exigente tocando piano – música popular brasileira e repertório do húngaro Béla Bartók – na casa da avó de uma das figurantes, que se tornou sua amiga durante as filmagens. “As pessoas de Uruguaiana eram muito simpáticas, muito amorosas, muito receptivas. Não achavam que a gente veio invadir a cidade”.

6. O épico particular de Laura Marsiaj – parte I

Se para Maria Zilda era um alívio encontrar um oásis com sombra e piano em meio à rotina extenuante, para dona Hilda Bastos Marsiaj era um prazer receber uma jovem atriz interessada em tirar a poeira do instrumento na sala de estar, fazendo com que música se espalhasse pelos cômodos. De seus armários saíram espartilhos, xales e outras peças vestidas pela atriz em cena. “Minha avó guardava muita roupa antiga, e eu peguei algumas coisas e levei para o figurino da Maria Zilda”, conta Laura Marsiaj, neta de Hilda e uma das jovens de Uruguaiana que fizeram figuração em A Intrusa.

“Aquilo que me salvou naquele verão”, relembra Laura. Recém-formada em psicologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS),em Porto Alegre, ela havia decidido passar alguns meses na casa da família em Uruguaiana para planejar seus próximos passos na vida, que incluíam um casamento marcado e uma mudança para o Pará. Ao retornar, não encontrou mais a cidade de sua adolescência.

Visão aérea de Uruguaiana no fim da década de 60, com rio Uruguai e a Argentina ao fundo

Visão aérea de Uruguaiana no fim da década de 60, com rio Uruguai e a Argentina ao fundo

CARTÃO POSTAL (PARANÁ CART)/IBGE/DIVULGAÇÃO/JC

A posição estratégica de Uruguaiana não servia apenas ao transporte de mercadorias e relações comerciais entre países vizinhos. Em um período movido sob trilhos, a cultura também passava, obrigatoriamente, por ali. Por décadas, a Fronteira Oeste do Rio Grande do Sul dava abrigo para companhias de teatro e ópera que percorriam a longa jornada de trem do Rio de Janeiro até Buenos Aires. Nos vagões, os passageiros vinham acompanhados de rolos de filme. Era um cenário de oportunidades para que Uruguaiana tivesse ao seu dispor uma variada programação artística para preencher a grade de horários dos cinemas.

Na infância de Laura a cidade tinha quatro salas de rua, e já era conhecida na bilheteria de cada um. “No domingo, eu passava o dia no cinema. Tinha sessão das 13h30 que eram dois filmes, um bang bang, algum do Elvis Presley, coisas assim. Depois tinha uma sessão às 17h, às 20h e às 22h, e eu ia em todas”. Com o tempo, começou a aproveitar a variedade de filmes em cartaz na cidade, o que moldou seu gosto por cinema. “Eu vi Bela da Tarde, vi Doutor Jivago, todos os grandes filmes passavam lá em Uruguaiana”.

No fim da década de 1970, o cenário era outro. A expansão do transporte aéreo transformou Uruguaiana em uma parada dispensável na rota da arte que vinha do Sudeste. Os trens de passageiros já haviam feito suas últimas viagens, e agora, sob rodas, a estrada parecia mais longa. Além disso, o impacto da televisão na atividade dos cinemas de rua e o incêndio do histórico Theatro (e depois Cine Theatro) Carlos Gomes, inaugurado em 1885, mudaram Uruguaiana rapidamente e dificultaram o acesso dos moradores ao que se produzia de mais instigante Brasil e mundo afora. Dos quatro cinemas de outrora, só um estava em funcionamento, “e que só passava filme horroroso”, relembra Laura. Sem ter o que assistir, ela aguardava a passagem do tempo daquelas férias indeterminadas.

O ano virou, e aquele janeiro de 1979 parecia tão entediante quanto o mês anterior. Em mente, tinha apenas dois planos fixos para as férias: uma viagem rápida que planejou para o Rio de Janeiro e seu evento favorito do carnaval, o bloco do Tênis Clube Rio Branco. E foi em uma tarde no clube que Laura conheceu e fez amizade com uma gente nova. Eram atores, também interessados em escapar do calor e aproveitar ao máximo a estadia nos poucos momentos de folga do trabalho. Através deles que Laura ficou sabendo da novidade que começava a correr as ruas: uma equipe profissional de cinema estava de passagem por Uruguaiana para rodar um filme baseado em uma história de Jorge Luis Borges, e o diretor Carlos Hugo Christensen precisava de figurantes locais para algumas cenas. Sem hesitar, se voluntariou imediatamente.

Laura e outras jovens de faixa etária semelhante foram escolhidas para interpretar as moças – nos créditos, chinas – que trabalhavam no cabaré de Efigênia (Palmira Barbosa). O set era em uma casa abandonada perto do cemitério municipal. De manhã cedinho já tinha luz solar, e a kombi da produção saía para começar mais um dia. Ela relembra a experiência no set como dois dias inteiros de pouca ação e muita espera, todos de prontidão, apropriadamente trajados, aguardando o chamado de Christensen.

A oportunidade de participar das gravações de um longa-metragem e acompanhar de perto o funcionamento de um set era como se fosse um filme à parte. Era um momento único de ver as pessoas da cidade em figurinos semelhantes, comprometidos com as orientações de um diretor de cinema, juntos vivendo outras vidas, tão diferentes das encenações da realidade. Laura conhecia a maioria dos colegas de cena: sua irmã, primos, amigos e outros conterrâneos participaram do filme, e a sensação era de que a cidade inteira estava no filme. “Foi uma coisa que animou a cidade inteira, todo mundo participou.”

O trabalho de figuração foi curto e resolvido em poucos dias, mas a amizade com a equipe seguiu, e Laura se tornou uma guia de Uruguaiana para os atores vindos de fora. No caminho para bares, clubes ou eventos promovidos para recepcionar os visitantes ilustres, o ponto de encontro era a casa de sua família, ou “o quartel-general do filme”.

Abrindo as portas do lar para os amigos da filha, a família de Laura também ficou entusiasmada com as filmagens. Foi assim que floresceu a amizade entre Maria Zilda e dona Hilda. Foi assim, também, que o pai de Laura se voluntariou para prestar um laboratório de lidas gaúchas para José de Abreu e Arlindo Barreto. Ele ensinou aos atores a maneira correta de subir e se equilibrar em cima de um cavalo e o manuseio de galos durante as cenas gráficas de rinha, prática popular no fim do século 19 que, mesmo já proibida na época das filmagens, ainda acontecia em zonas campeiras mais afastadas. “Meu pai ensinava como é que eles tinham que segurar, e eles cheios de nojo, de pena”, relembra.

A Intrusa veio na direção de Laura se intrometendo, literalmente, naquele verão que tinha tudo para ser pacato. Ela foi de figurante à assistente de figurino com peças de sua família. Viu seu pai atuando como consultor para jovens urbanos, fez amizade com gente de cinema que surgiu do nada e logo mais já ia embora. Entretanto, ela não imaginava que teria, ainda, mais uma e derradeira função extra-oficial naquela produção, como se saísse da projeção de um filme noir: the fixer. Laura foi chamada ao resgate.

Pilares de entrada da Ponte Internacional em Uruguaiana, símbolo da cidade

Pilares de entrada da Ponte Internacional em Uruguaiana, símbolo da cidade

CARTÃO POSTAL (PARANÁ CART)/IBGE/DIVULGAÇÃO/JC

7. O épico particular de Laura Marsiaj – parte II

Não havia rivalidade de fronteira que sobrevivesse à vontade de fazer compras em Paso de Los Libres, cidade argentina muito menor que a vizinha brasileira e destino certo para jovens e turistas. Os melhores vinhos e alfajores estavam lá, e os bailes de Carnaval nas duas cidades eram lendários. No entanto, a Argentina ainda mantinha viva uma tradição que se tentava reprimir no Brasil.

No início do século 20, uruguaianenses e libreños lotavam clubes nas duas cidades para noites de festas épicas, aromatizadas pelo conteúdo de um cilindro metálico sempre à mão dos foliões. Tão tradicional como confete e serpentina, o lança-perfume era parte fundamental dos festejos, proporcionando euforia e desinibição, ou a sensação fugaz de sair do chão. O líquido solvente à base de cloreto de etila, éter, clorofórmio e essência perfumada chegou no Brasil importado da França, e a instalação de uma filial de produção da companhia química Rhodia na Argentina facilitou sua popularização. Uruguaiana era porta de entrada do produto, também conhecido como loló, para animar outros blocos Brasil afora.

Por mais de 50 anos, foi sinônimo de carnaval e não podia faltar, até que seu uso, venda e fabricação foram proibidos no Brasil em 1961. No decreto assinado por Jânio Quadros, citando o risco à saúde causado pelas substâncias nocivas, havia o alerta que “se vem generalizando, de maneira alarmante, a prática de aspiração do ‘lança-perfume’ como meio de embriaguez”. Apesar disso, nada mudou do outro lado do rio Uruguai, o que, para os brasileiros, fazia de Paso de Los Libres uma atração diferenciada. É claro que sempre havia quem tentasse se aventurar levando aquela exclusividade para o Brasil de maneira irregular, escondido em algum canto do carro ou junto ao corpo. Testar o bom olhar dos policiais aduaneiros, ou a boa vontade deles caso suspeitassem de algo estranho, era uma estratégia arriscada. Para alguns integrantes da equipe do filme aproveitando um dia de folga, o resultado foi a prisão em flagrante e a paralisação das gravações de A Intrusa por tempo indeterminado.

“O Ricardo Wanick tinha ido passar o dia comigo na fazenda dos meus pais. Quando a gente chega no hotel eu achei estranho… cadê os outros? Já estavam todos presos e a Polícia Federal estava esperando ele (Wanick) chegar para prender também”, conta Laura Marsiaj. Com parte do elenco sob custódia da polícia, A Intrusa estava no limbo.

Alfândega em Uruguaiana, parada obrigatória para entrar no Brasil

Alfândega em Uruguaiana, parada obrigatória para entrar no Brasil

CARTÃO POSTAL (PARANÁ CART)IBGE/DIVULGAÇÃO/JC

Em meio à incerteza da equipe sobre quanto tempo a prisão temporária iria durar, Laura era um dos poucos rostos familiares na cidade, e uma aliada importante para esclarecer a situação deles no lado de fora. Por isso, ela cancelou seus planos para o restante do verão e decidiu ficar em Uruguaiana, mobilizada com a equipe de produção do filme para auxiliar nas tentativas de liberação dos amigos.

Laura foi atrás de moradores da cidade que pudessem prestar orientações legais e o apoio necessário para tirar os amigos da cadeia. Nos dias de visitação, ia para a penitenciária levar bolo e lanches para os amigos encarcerados, e, num piquenique improvisado, os atualizava sobre os esforços para tirá-los de lá. “Foi cômico, eu nunca me imaginei passeando no pátio da prisão de Uruguaiana”, ri. Ela desconfia que a equipe só foi punida desta maneira porque o caso daria repercussão para o trabalho dos agentes de segurança na fronteira, ponderando que o lança-perfume ainda não havia deixado a cultura carnavalesca de Uruguaiana, e que sua proibição estava longe de ser cumprida à risca na aduana.

Na tentativa de sensibilizar as autoridades, Laura contou mais uma vez com a prestatividade da sua família para o sucesso das filmagens. “Meu pai e minha mãe foram testemunhar que todos frequentavam nossa casa, que eram ótimas pessoas, que não tinham nada contra eles, que ninguém era drogado. Com isso, eles foram liberados”. Após três semanas de interrupção forçada, todos estavam de volta no meio do campo para tirar o atraso no cronograma.
A estadia da equipe em Uruguaiana se estendeu até março, quando Christensen finalmente completou as últimas cenas, e assim acabava também um verão divertido como nunca. “Foi muito engraçado, foi muito bom e foi uma amizade, assim, por um tempo. Depois, claro, cada um seguiu a sua vida.”

As filmagens acabaram e a cidade voltou ao normal, e enquanto isso a vida de Laura virou de ponta-cabeça. A mudança não aconteceu, o noivado acabou, e os poucos meses em Uruguaiana se tornaram dois longos e maçantes anos.

A sensação de deslocamento só diminuiu quando novas amizades a motivaram a criar um clube de cinema. Laura conseguiu o contato do dono de uma distribuidora de filmes em Porto Alegre, marcou uma reunião e pegou a estrada para explicar o projeto. A resposta foi positiva, e a parceria foi fechada. “Ele me emprestava filmes toda semana, enviava no ônibus da Planalto (empresa de transportes interestadual) para a gente, e o dono do cinema nos emprestava a sala”, conta.

O grupo se organizava com carteirinha de membro e pagamento de mensalidade, e promovia sessões de obras fora do circuito comercial. Após a exibição, todos se reuniam noite adentro para discutir o filme.

Laura movimentou o projeto pelos dois anos que ficou na cidade até dar um adeus definitivo a Uruguaiana e recomeçar a vida, primeiro em Porto Alegre e depois no Rio de Janeiro. Por 16 anos, liderou a Laura Marsiaj Arte Contemporânea, galeria de arte que movimentou o bairro de Ipanema dando espaço a dezenas de artistas consolidados e em ascensão. O espaço funcionou até 2016, quando Laura decidiu encerrar o projeto e buscar novos ares em Portugal, onde mora hoje e atua como psicóloga.

Apesar de não trabalhar mais na área, a arte nunca deixou de fazer parte do cotidiano de Laura, ainda mais depois que a paixão pelo cinema se tornou assunto de família. Sua filha, a diretora de fotografia Carolina Costa, tem no currículo projetos como Las Elegidas (David Pablos, 2015), Babenco: Alguém Tem que Ouvir o Coração e Dizer Parou (Bárbara Paz, 2019) e Fancy Dance (Erica Tremblay, 2023). Outros trabalhos incluem episódios da série da HBO Insecure (Issa Rae & Larry Wilmore, 2016-2023), e a fotografia de segunda unidade em Suspiria (Luca Guadagnino, 2018).

Em junho do ano passado, Laura foi ao Festival de Tribeca em Nova York acompanhar Carolina, premiada pelo drama The Graduates (Hannah Peterson, 2023). “Sempre que a entrevistam, a Carolina diz que resolveu que queria fazer cinema depois que a mãe dela mostrou um filme para ela”, conta Laura – o longa-metragem macedônio Antes da Chuva (Milcho Manchevski, 1994), vencedor do Leão de Ouro no Festival de Veneza e indicado ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro. “Desde criança, muito pequena, eu me lembro de pensar ‘eu quero ir para Los Angeles’, ‘eu quero ir para Hollywood’. Eu pensava no estrelato, em fugir de casa, sabe essas coisas malucas? E eu acho que, de alguma maneira, devo ter passado isso para minha filha”.

Sobre a ideia de considerar a carreira de atriz após a figuração em A Intrusa, Laura nunca se sentiu confortável – “sou muito tímida” –, mas o interesse em fazer parte do mundo do cinema nunca foi embora. Antes de se mudar para Portugal, ela participou de um curso de roteiro para filmes, e a história contada não poderia ser outra. “Eu tinha vontade de escrever um roteiro para cinema sobre como tinham sido aqueles dois meses naquele verão em Uruguaiana, quando passa aquela equipe ali e tudo se transforma, sabe? E depois eles saem e volta aquela aquela vida, aquela mesmice de novo”.

8. ‘O gaiteiro destampa a cordeona / Que se espicha, se encolhe e se dobra’

As dificuldades durante as filmagens, a prisão temporária de parte da equipe e a obsessão pela miríade de detalhes cênicos não foram os únicos contratempos enfrentados pelo diretor: quando todos voltavam ao Rio de Janeiro para começar a pós-produção, o extravio de duas malas com os últimos 250 metros dos negativos das filmagens obrigou Christensen e uma equipe reduzida a retornar a Uruguaiana e refilmar o material perdido. Maria Zilda Bethlem também foi acionada para uma última contribuição, a redublagem de sua única fala no filme inteiro, porque um problema técnico impediu a captação do áudio.

Quase todos os outros aspectos da produção causaram alguma dor de cabeça, mas ao menos uma parte fundamental aconteceu com leveza, só para variar. A pesquisadora Andrea Ormond conta que a parceria do diretor com o músico Astor Piazzolla foi descontraída. A ideia para a trilha surgiu enquanto ambos caminhavam no centro do Rio de Janeiro, e o músico repentinamente perguntou onde encontrar o piano mais próximo. Christensen o levou até o auditório da Fundação Nacional de Artes, Piazzolla sentou-se ao instrumento e ali mesmo compôs a música-tema.

Astor Piazzolla ao piano, acompanhado de Carlos Hugo Christensen

Astor Piazzolla ao piano, acompanhado de Carlos Hugo Christensen

REVISTA ISTOÉ/DOSSIÊ FILMES BRASILEIROS/ARQUIVO FUNARTE/DIVULGAÇÃO/JC

O músico argentino era familiarizado ao cinema: em 1935, quando adolescente, morava com a família imigrante em Nova York, e lá fez uma pequena participação em El día que me quieras, estabelecendo uma breve amizade com o lendário Carlos Gardel, estrela do filme. De volta à Argentina, Piazzolla se destacou como prodígio do bandoneon e por suas composições que uniam ritmos argentinos, música erudita e instrumentos modernos como guitarras e sintetizadores. Pioneiro do nuevo tango (e apelidado de “asesino” do gênero original), Piazzolla estendeu sua busca por experimentação sonora à milonga, e que ecoa pelos campos fronteiriços de A Intrusa. A trilha inteira foi gravada em uma sessão ininterrupta de oito horas em Buenos Aires, com apoio do pianista Pablo Ziegler, os guitarristas Fernando Suárez e Oscar López Ruiz e o contrabaixista Hector Console.

A Intrusa contou com a colaboração local de músicos consagrados, como Mário Barbará Dornelles musicando a “Milonga de João Iberra”, escrita por Borges, e Ubirajara Raffo Constant letrando a melodia da “Canção do Amanhecer” de Piazzolla. No filme também se ouve a música “Baile de Rancho”, uma composição de Telmo de Lima Freitas, autor de clássicos nativistas como “Prenda Minha” e nome basilar do regionalismo gaúcho. As três músicas foram interpretadas pelo payador da história Miguel Barbará. Participando em frente e por trás das câmeras, os artistas fronteiriços contribuíram para o objetivo de Christensen de caracterizar o que aquele povo retratado produzia e apreciava de arte.

A inserção dos áudios dublados e da trilha sonora de Piazzolla deram início à fase de pós-produção, e depois dos processos de montagem das cenas e edição e mixagem de som, o trabalho árduo foi concluído de vez. A Intrusa estava pronto. 

9. Sopros do Minuano

“A angústia me oprime por ti; ó meu irmão Jônatas! Tu eras toda minha delícia;
teu amor era para mim mais precioso que o amor das mulheres” (2 Reis, I, 26).

FUNARTE/DIVULGAÇÃO/JC

A Intrusa é uma história sobre amor fraterno. O versículo bíblico acima, que profetiza a relação conturbada entre os irmãos Nilsen, é referenciado tanto em conto e em tela, e dá a tônica da discussão que acompanharia o longa-metragem a partir de seu lançamento.

A estreia oficial de A Intrusa foi no 8º Festival de Gramado em março de 1980 com aclamação de público e crítica, vencendo quatro Kikitos: melhor diretor, melhor ator para José de Abreu, melhor fotografia para Antônio Gonçalves e melhor trilha sonora para Piazzolla.

O filme ficou quase dois meses em cartaz em Porto Alegre e no Rio de Janeiro, e depois seguiu para outras oito capitais brasileiras. A recepção da crítica especializada foi positiva, com destaque à direção de Christensen, aspectos visuais como fotografia e direção de arte, e as atuações. Em paralelo ao sucesso, ou talvez em decorrência dele, A Intrusa veio acompanhado de controvérsia.

Arlindo Barreto e José de Abreu em pôster de 'A Intrusa'

Arlindo Barreto e José de Abreu em pôster de ‘A Intrusa’

CINEMATECA BRASILEIRA/DIVULGAÇÃO/JC

O cinema brasileiro dos anos 70 não era estranho ao erotismo. Era a década de surgimento da pornochanchada, gênero cinematográfico nascido no Brasil que fazia sucesso comercial estrondoso, e também um período muito rico para filmes dramáticos que abordavam temas como sexualidade, intimidade, e desejos reprimidos ou secretos do cidadão brasileiro.

Grandes diretores do período, como Walter Hugo Khouri, Jean Garret e Carlos Reichenbach, percebiam a nudez como recurso visual importante para representar as reflexões que propunham sobre esses temas. A perspectiva dos cineastas sobre o simbolismo do corpo nu feminino influenciavam decisões desde o roteiro até o enquadramento, iluminação e captação de áudio.

No fim da década, mais de 6 milhões de brasileiros foram ao cinema assistir A Dama do Lotação (Neville d’Almeida, 1978), drama erótico estrelado por Sonia Braga que ocupa atualmente o 7º lugar no ranking das maiores bilheterias nacionais. Foi também quando movimentos conservadores e religiosos se opuseram com força ao “excesso” de cenas de sexo nas telas, e a fama de o cinema brasileiro ser uma “putaria” que “só tem mulher pelada” começou.

Em A Intrusa, Christensen também se utilizou da técnica de nudez para representar suas reflexões, com a diferença de aplicá-la também aos corpos masculinos, o que fez do longa um ponto fora da curva em relação aos demais filmes. Com a visão artística apurada do diretor, A Intrusa passa longe de ser explícito, mas faz uso de elementos eróticos para ilustrar a tensão crescente, se aproximando do insustentável, na relação entre Cristiano, Eduardo e Juliana.

A ousadia dessa escolha visual, somada à indicação de uma ligação profana entre os irmãos Nilsen, era reforçada pelo contexto tradicionalista do pampa e de seus mitos e não tardou a causar polêmicas. Uma edição especial da revista Istoé Cinema Brasileiro sobre A Intrusa reconta o discurso inflamado de um vereador de Uruguaiana, repudiando que o filme representava a cidade como um lugar no qual “dois irmãos praticavam homossexualismo”. Fiel à sua visão, Christensen bancou suas decisões até o fim, orgulhoso de ter colocado na tela o que ele acreditava ser uma adaptação fidedigna da obra de Jorge Luis Borges.

Para alguns reacionários, muitas coisas em A Intrusa poderiam escandalizar, e assim aconteceu. Para a outra parte do público, o filme era um filme. No fim das contas, o pior inimigo de A Intrusa foi sua distribuição para as salas de cinema, feita em pedaços, impedindo um lançamento unificado em todo o território nacional.

Maria Zilda Bethlem e Arlindo Barreto em pôster de 'A Intrusa'

Maria Zilda Bethlem e Arlindo Barreto em pôster de ‘A Intrusa’

FACEBOOK RETROSPECTIVA CHC/DIVULGAÇÃO/JC

Os problemas pontuais enfrentados por A Intrusa durante a distribuição do filme no Brasil não se aproximam da dificuldade para levar o filme aos cinemas da Argentina. A estreia, prevista para 1980, foi suspensa porque Christensen se negou a cortar as cenas eróticas, como exigia a ditadura militar daquele país. A situação não era nova para o diretor, que acumulava embates sobre moralidade com outros governos da Casa Rosada desde o início de sua carreira. Em retorno, denunciou a censura com uma campanha pela liberdade de expressão. Seu principal aliado foi Astor Piazzolla, que convocou uma coletiva de imprensa para questionar publicamente a autoridade dos censores.

A mobilização tinha uma ausência notória no indignado Jorge Luis Borges, que depois de tanto relutar em autorizar a filmagem teve, em sua percepção, o medo de uma adaptação “pornográfica” concretizado. O escritor, crítico contumaz das repressões à arte, não deixava dúvidas sobre a exceção que abriria a si mesmo ao assinar o artigo “Sí a la Censura“, marcando posição contra o tom explícito e dos rumos da adaptação.

Borges discordou furiosamente da interpretação que Christensen fez do versículo central à história: para o escritor, a passagem bíblica fundamentava aspectos de fraternidade e camaradagem intrínsecos à relação masculina. No contexto do conto essa relação já era levada a extremos profanos, mas a adaptação de Christensen incluía uma dimensão homoerótica que Borges deliberadamente quis evitar na escrita original. Quando finalmente estreou em Buenos Aires, A Intrusa foi um sucesso estrondoso: de acordo com jornais argentinos compilados no Dossiê Cinema Brasileiro da Funarte, foram 22.198 espectadores no primeiro dia de exibições em apenas dois cinemas.

A revolta de Jorge Luis Borges veio como um choque para Christensen, que três anos antes havia organizado à distância uma projeção privada para o autor e convidados, e na ocasião seu retorno foi positivo. Entretanto, aponta Andrea Ormond, Borges já estava cego desde a década de 50, e suas opiniões foram formuladas basicamente através do que ouviu. Na primeira oportunidade, quem lhe narrou o filme ao ouvido foi sua esposa, a escritora María Kodama. Na segunda, quem narrou foi outra voz, mais crítica. Em entrevista ao pesquisador argentino Mario Gallina, Christensen disse que nunca responsabilizou seu ídolo pela mudança de pensamento: segundo o diretor, um amigo “desprezivelmente intriguista” de Borges influenciou sua guinada de perspectiva sobre o filme. Sobre essa mudança, Ormond também observa que o escritor era cinéfilo, então certamente conhecia de décadas o pioneirismo de seu conterrâneo Christensen em retratar temas como homossexualidade e erotismo em seus filmes.

Para o cineasta, psicanalista e filósofo Afrânio Vital, que foi assistente de direção de Carlos Hugo Christensen na filmagem do suspense Anjos e Demônios (1970), A Intrusa é um filme enigmático, mas fiel ao estilo do escritor argentino. “Por ser um conto de Borges, é semelhante a uma fábula, com um começo, meio e um fim que amarra tudo em um ensinamento”, diz Vital, apontando uma relação do longa-metragem com os trabalhos do diretor italiano Pier Paolo Pasolini. “Christensen aborda a tragédia, no sentido grego do termo, de uma forma realista, o que assusta ainda mais a todos nós, tendo assustado até Borges, que se recusou a reconhecer seu conto no filme”.

Palácio Rio Branco, sede da prefeitura (e); Cine Corbacho no térreo do edifício (c); e Clube Comercial (d), prédios históricos no coração cultural de Uruguaiana

Palácio Rio Branco, sede da prefeitura (e); Cine Corbacho no térreo do edifício (c); e Clube Comercial (d), prédios históricos no coração cultural de Uruguaiana

IBGE/DIVULGAÇÃO/JC

Antes de chegar às principais metrópoles do Brasil, A Intrusa teve uma sessão especial de pré-estreia em Uruguaiana, apresentada pelo próprio diretor, no antigo Cine Corbacho, em frente à praça central. Toda a renda do evento foi convertida ao Hospital Santa Casa de Caridade, a principal instituição médica da Fronteira Oeste. Os moradores da cidade que meses antes auxiliavam a produção fazendo figuração ou favores estavam juntos de novo, dessa vez todos sentados, no escuro, para se encontrarem na tela.

Laura Marsiaj estava entre eles, em um dos lugares que a conectou com o cinema desde menina. “Fiquei emocionada”, conta sobre aquela noite especial. Laura foi uma das pessoas que Christensen chamou ao palco para agradecer pelos serviços prestados – abertamente, a participação nas cenas, a cedência de figurino e o apoio geral dela e de sua família durante as filmagens. O reconhecimento por sua ajuda estratégica durante três semanas de caos e pelo testemunho de seus pais para libertar da prisão uma parte da equipe e elenco do filme era implícito.

Quando leu a história original, Laura não a interpretou como Christensen, mas apreciou a abordagem do diretor. E, apesar dos temas polêmicos, ela não se lembra de “nada reativo” na repercussão de A Intrusa na cidade. “Uma coisa que sempre me chamou a atenção lá em Uruguaiana, não sei se é assim no resto do interior do Rio Grande do Sul, é que a homossexualidade parecia muito bem aceita”, pondera, relembrando referências LGBT+ de sua juventude, como um advogado influente e prestigiado da cidade, casais homossexuais que conviviam de maneira aberta em círculos sociais, pessoas que conhecia desde a infância e amigos da vida adulta morando lá. “Tem umas coisas que eu não consigo juntar: ao mesmo tempo que tem uma coisa de machismo absurdo, sempre todo mundo conviveu com gays”.

Seja qual for a interpretação do público sobre a natureza real da relação dos Nilsen e as críticas pontuais, a polêmica sobre as temáticas do filme não teve força o suficiente para impedir que os moradores acolhessem quem capitaneou todo o projeto. Apesar de quase soterrado pelo dominó de desastres que caíram sobre o projeto, o diretor guardava boas lembranças de Uruguaiana. Em entrevista ao jornal Correio do Povo em março de 1980, relatou um acontecimento singelo que o emocionou: uma senhora se apresentou a ele e contou que usava o mesmo corte de cabelo há mais de 30 anos, inspirada na protagonista de um de seus primeiros filmes, Safo – Historia de una pasión (1942).

A experiência em Uruguaiana também trouxe popularidade aos atores. Talvez a principal consequência do sucesso do filme foi a atenção para o talento dos três protagonistas, alçados à fama nacional nos anos seguintes à estreia. José de Abreu construiu uma das trajetórias mais vastas e premiadas dentre atores de sua geração, consagrado principalmente por novelas como Senhora do Destino (2004) e Avenida Brasil (2012). Arlindo Barreto se consagrou poucos anos depois de A Intrusa como intérprete do palhaço Bozo. Atualmente, é pastor da Congregação Batista Brasileira, produz álbuns de música evangélica para o público infantil e é engajado com projetos sociais e missionários, e sua história de vida serviu como base para a semibiografia Bingo – O Rei das Manhãs (2017).

Para Maria Zilda, A Intrusa foi o ponto de virada definitivo que ela buscava desde o trabalho cultural no Mobral. Sua atuação no filme e a aclamação decorrente mostrou para outros diretores sua capacidade em dominar papéis, e sua versatilidade ficou evidenciada em novelas como Vereda Tropical (1984), Bebê a Bordo (1988), Por Amor (1997) e Caras e Bocas (2009). No cinema, se destacou em Vagas para Moças de Fino Trato (Paulo Thiago, 1993), reconhecida como Melhor Atriz no Festival de Cinema de Brasília, e Eu Não Conhecia Tururú (Florinda Bolkan, 2000), pelo qual foi premiada em Gramado, além dos filmes Espelho de Carne (Antônio Carlos da Fontoura, 1985) e Minha Vida em Suas Mãos (José Antônio Garcia, 2000), ocasião que marcou sua estreia como produtora. Recentemente, trabalhou nas séries Pico da Neblina e Chuteira Preta.

Para Maria Zilda, 'A Intrusa' é um dos projetos mais importantes de sua carreira

Para Maria Zilda, ‘A Intrusa’ é um dos projetos mais importantes de sua carreira

DOSSIÊ FILMES BRASILEIROS/ARQUIVO FUNARTE/DIVULGAÇÃO/JC

Em retrospecto, a atriz percebe que diferentes caminhos a trazem de volta ao Rio Grande do Sul desde aquele verão. A vida e a arte lhe trouxeram grandes amigos gaúchos, e quer voltar ao Estado para fazer mais: Maria Zilda está com saudade de se apresentar no Theatro São Pedro, em Porto Alegre, no Teatro Sete de Abril, em Pelotas, e nos palcos de mais de uma dezena de cidades do interior que percorreu nos anos 90 em turnê teatral, e tem interesse em retornar ao Estado em frente às câmeras, interessada no trabalho dos diretores gaúchos.

O ímpeto que continua movimentando Maria Zilda em direção à sua arte é consequência de uma forma honesta, quase clarividente, de encarar a profissão de atriz. 45 anos depois do pedido para que o Ministro do Exército liberasse as filmagens, Maria Zilda segue sem entender a indignação com as cenas de intimidade em A Intrusa. A atriz enxerga a situação de uma maneira objetiva e prática: Carlos Hugo Christensen fez um filme baseado em um conto de Jorge Luis Borges, no qual dois irmãos dividiam uma mesma mulher e a relação entrava em disrupção, e essas cenas eram parte fundamental da história a ser contada. Ela relembra que o diretor abordava essas cenas com a meticulosidade de quem ensaia uma dança. “Ele dizia ‘você fica aqui’, ‘o Arlindo vem por aqui’, ‘o José vem por aqui e fica em cima de você, aí você abraça o outro’. Uma cena de sexo acaba virando uma coreografia mesmo”.

Maria Zilda acredita que as escolhas de Christensen eram sua prerrogativa na hora de fazer uma adaptação, e ele tinha uma visão clara de como queria colocar aquela história na tela. De acordo com a visão do diretor, ela é grata pela oportunidade de estrear no cinema com uma personagem no nível de Juliana Burgos. “Quando alguém me pergunta quais as coisas mais importantes que eu fiz, sempre falo de A Intrusa. Não só porque foi a primeira protagonista, como era o conto do Borges. Era um escritor maravilhoso, eu tinha o maior prazer em ler, então foi uma honra para mim fazer uma personagem do Jorge Luis Borges. Não é para qualquer um.”

10. Amanhã virá a bala: ‘A Intrusa’, 45 anos depois

Para um filme que movimentou uma região inteira e pautou debates sobre liberdade de expressão em dois países diferentes, A Intrusa hoje é ostracizado, como tantas produções cinematográficas de sua época. A obra é acessível ao público apenas em péssima resolução no YouTube e em raras exibições especiais durante eventos temáticos. Em Porto Alegre, a exibição mais recente ocorreu no Cinema Capitólio em julho de 2017, na programação de uma mostra dedicada à relação entre Jorge Luis Borges e o cinema. De acordo com o crítico de cinema Marcus Mello, técnico em cultura da instituição, a versão hoje disponível do filme é digital, sem restauração e em qualidade baixa. “Não há cópia em 35mm em condições de exibição, nem DCP (Digital Cinema Package) em 2K ou 4K, que hoje é o padrão para exibição em cinema e nos canais de streaming”, explica.

O que impede que A Intrusa e centenas de outros filmes realizados na era pré-digital caiam no esquecimento é o trabalho dedicado de uma frente ampla: são funcionários de cinematecas e arquivos, pesquisadores, críticos, artistas, técnicos e tantos outros profissionais ou entusiastas do cinema nacional, atuantes em diferentes iniciativas para preservar a história do audiovisual brasileiro.

Esta reportagem não existiria sem o acervo documental precioso no Dossiê Filmes Brasileiros da Funarte, fundamental para obter ou confirmar a maior parte das informações apuradas. A consulta a matérias jornalísticas, relatórios entregues à Embrafilme, análises escritas pelo diretor e outros dados ou anedotas sobre A Intrusa só foi possível devido ao catálogo extenso da plataforma.

A revisão do lugar de Carlos Hugo Christensen no cânone do cinema brasileiro também é fruto da dedicação de muitos pesquisadores da área, como as entrevistas e levantamentos históricos que Andrea Ormond fez por anos no blog Estranho Encontro, tal como outros estudiosos que jogam luz na contribuição artística de cineastas pouco lembrados.

Para aqueles que trabalharam diretamente com Christensen, caso de Afrânio Vital, difundir a obra do diretor é uma missão feita com prazer. Vital acumulou ao longo da vida uma série de fotografias, histórias de bastidores e informações pouco conhecidas sobre o passado do cinema nacional, e regularmente compartilha essas lembranças online. Registros como esses, tal como o compartilhamento de cenas selecionadas de filmes em redes sociais, também impulsionam a redescoberta de Christensen por um público mais jovem.

Quem tiver interesse em assistir A Intrusa e tolerar a baixa qualidade da imagem pode perceber o valor técnico e artístico no filme, e ter a expectativa de um dia ver a obra respeitada e restaurada. Para o outrora pupilo Afrânio Vital, A Intrusa leva a ousadia do seu mentor Christensen ao máximo: “É um filme muito adiantado para seu tempo e até para hoje”.

Milonga de João Iberra
letra adaptada de Jorge Luis Borges
melodia de Mário Barbará Dornelles

O João Iberra morreu
Isso é moeda corrente
Pois morrer é um costume
Que sabe ter toda gente

Amanhã virá a bala
E com a bala el olvido
Dizia o sábio Merlim:
morrer é haver nascido

Apesar disso me dói
Me despedir dessa vida
Essa coisa tão de sempre
Tão doce e tão conhecida

Na alva olho minhas mãos
E nas mãos as minhas veias
Com estranhezas contemplo
Como se fossem alheias

Quanta coisa em seu caminho
Estes olhos terão visto
Quem sabe o que eles verão
Depois que me julgue Cristo

‘A INTRUSA’/YOUTUBE/DIVULGAÇÃO/JC

Carlos Villela

Editor-assistente

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